Legado
Já não digo a palavra que te prometi.
Não há mais tempo, vai anoitecer.
Ouve-a, pois, no silêncio que te deixo
Como herança.
Não, pulsam todos os versos
De que gostares,
Meus ou doutro poeta, não importa.
O que é preciso é que não esteja morta
No teu coração a pungente saudade
Das horas que tivemos.
Horas de eternidade,
se souberes recordá-las como as vivemos.
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Tens agora outro rosto, outra beleza:
Um rosto que é preciso imaginar,
E uma beleza mais furtiva ainda...
Assim te modelaram caprichosas,
Mãos irreais que tornam irreal
O barro que nos foge da retina.
Barro que em ti passou de luz carnal
A bruma feminina...
Mas nesse novo encanto
Te conjuro
Que permaneças.
Distante e preservada na distância.
Olímpica recusa, disfarçada
De terrena promessa
Feita aos olhos tentados e descrentes.
Nenhum mito regressa....
Todas as deusas são mulheres ausentes...
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Desfecho
Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...
E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados, mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.
Vale a pena visitar.
http://www.vidaslusofonas.pt/miguel_torga.htm
Miguel Torga
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Capitão