O cego que colava.

Em nossas vidas passamos por vários momentos constrangedores. Alguns constrangimentos podem ter o mesmo efeito que o afundamento do Titanic, ou seja, uma tragédia e outros podem até passar despercebidos para as outras pessoas, mas para nós, vira e mexe, ressurgem na memória e ficamos pensando em “como é que paguei aquele mico”?. Ainda na ordem das proporções, o mico pode se transformar num King Kong se, por exemplo, você estiver torcendo pelo Vasco na torcida do Flamengo e resolver comemorar um gol do Vasco.

Digamos que eu já tenha experimentado algo parecido, quando na decisão do campeonato brasileiro de 1980, eu, botafoguense de quatro costados, um vascaíno cuja família desembarcou aqui junto com o Cabral e um flamenguista, que por ser muito amigo nosso nos pediu para assistir a peleja entre o Atlético Mineiro (a camisa é parecida com a do Botafogo) e o dito Império do Mal, vulgo Flamengo, no meio das hostes do nefando império. A cada gol do Atlético eu e o vascaíno pulávamos e antes de tocar os pés de volta na arquibancada, já começávamos a gritar palavrões para disfarçar a alegria de ver o Flamengo levar um gol. Era mais ou menos assim: A torcida do Império do Mal berrando... “BICHADO, BICHADO, BICHADO” para o Reinaldo e ele fazendo gols. A cada gol (foram dois), um pulo e... “PQP!!! QUE M*.*RDA!!! OUTRO GOL!!!”, mas com um sorriso. Bom, infelizmente o lado negro da Força venceu a partida e conquistou o campeonato.

Agora, constrangimento daqueles bem engraçados quem sofreu foi um colega de turma na faculdade, o Genival (troquei o nome por motivos óbvios). Faz um tempo que não o encontro. O Genival é cego e, acreditem, colava pra caramba nas provas. O quê? Não acredita? Não se esqueça que tudo nesta vida, exceto a morte e baton na cueca, tem jeito de se contornar. A curiosidade aguçou, né? Querem saber como ele fazia pra colar? É bem simples.

Primeiro é preciso dizer que o Genival conseguia escrever tão rápido em Braile quanto nós em letra cursiva. O professor fazendo a explanação da aula e ele no “pléc, pléc, pléc, pléc”, ao usar um estilete para perfurar folhas de papel pardo. Impressionante como ele conseguia fazer. O caderno do Genival era uma moldura de alumínio na qual ele encaixava uma folha de papel pardo por vez e uma régua com duas fileiras horizontais de pequenos quadrados vazados, que colocava sobre a folha. O estilete parecia um daquelas chaves de fenda pequenas e cabia na palma da mão. A aula rolando e o Genival... “pléc, pléc, pléc, pléc”.

Em dia de prova ele era obrigado a levar alguém para escrever as respostas no papel da prova, pois os professores não sabiam ler Braile. Então, a cada pergunta que ele deveria responder, a resposta era ditada pelo Genival para a sua “secretária”. O que ninguém desconfiava e nem imaginava é que ele desenvolvera um método de cola. Como desconfiar que um cego vá colar numa prova? Seria um quase pecado, não?

Genival e a secretária sentados coladinhos e professor entregando as provas, que geralmente eram folhas de papel almaço em branco com o logotipo da Universidade e as questão vinham numa folha xerocada ou mimeografada. As questão eram extensas e demandariam um certo tempo para serem respondidas. A posição em que eles, Genival e secretária ficavam era como se estivessem fofocando. Um do ladinho do outro e sussurrando as respostas.

Um professor, não sei porque, resolveu prestar atenção e aí se deu kingkoniano constrangimento. Ele, Genival, preparava cola em Braile antes das provas. Coisa do tipo resumão, mais ou menos adivinhando o que cairia nas provas. A menina fazia a leitura da pergunta e ele, já com as folhas de papel pardo sob a pasta, que ficava em seu colo, corria os dedos pela cola e cantava as respostas para ela. Ele fez isto durante várias e várias provas. Até que este professor, por um ato digamos de sorte ou azar dependendo do ponto de vista tomou-lhe a cola e a prova e disse: Genival, até tu meu filho, colando?

Agora, Jeff Healey, um guitarrista cego canadense interpretando Stuck in the middle with you.